Frei Francisco Sales Diniz foi até há pouco tempo, o diretor da Obra Católica Portuguesa das Migrações e está agora na paróquia de Santo António, em Lisboa. Na entrevista ao «Mundo Português», concedida para esta edição de Natal, Frei Sales Diniz fala do trabalho que realizou na Obra Católica e do que mantém como director da Pastoral dos Ciganos. Mas fala também de compreensão, de caridade, de fé e de misericórdia. Pensamentos de um franciscano que aos 23 anos, e com uma perspetiva de vida que se encaminhava para o casamento, percebeu o porquê da “insatisfação interior” que sentia. “Ser franciscano, é a pessoa ter a consciência de que quer atingir a sua plenitude de ser humano. E depois, para quem tem fé, a plenitude de filho de Deus”.
Esteve vários anos à frente da Obra Católica Portuguesa das Migrações, como diretor. Como foi deixar este ‘mundo’?
Antes de ser diretor da Obra Católica, já estava ligado às migrações. Porque sou açoriano e o açoriano, por natureza, está ligado às migrações. Se calhar, os Açores serão a zona geográfica do nosso país de onde têm emigrado mais pessoas, tendo em conta os 250 mil habitantes do arquipélago e os cerca de um milhão que estão emigrados.
Sempre visitei as comunidades, particularmente as que vivem nos Estados Unidos e Canadá. E não me desliguei, antes pelo contrário, porque fiquei com uma relação próxima com as comunidades e com os missionários, que me estão sempre a contatar. É claro que o trabalho com os emigrantes é uma paixão, mas nós temos os nossos ritmos e chega a uma altura em que percebemos que, há certos tipos de trabalho, os quais não estamos em condições de desenvolver com qualidade e por isso é melhor passar o testemunho a outra pessoa.
Mas mantém o trabalho que tem vindo a desenvolver com a comunidade cigana em Portugal…
Já sou diretor da Pastoral dos Ciganos há vários anos. Os ciganos são os filhos de Portugal mais mal-amados. Sempre foram rejeitados, é uma história muito complexa. Eu costumo dizer que somos uma sociedade multicultural e multiétnica e não temos grandes problemas e racismo, mas somos racistas face aos ciganos.
O cidadão comum, quando se fala em ciganos, fica geralmente como ‘pé atrás’ por causa da forma se ser deles, a forma deles reagirem, mas só percebermos este comportamento se virmos a história de perseguição que esta população sofreu, as deportações massivas só pelo facto de serem ciganos. O Brasil tem quase um milhão de ciganos, enquanto nós temos cerca de 50 mil, e os do Brasil são descendentes dos ciganos que foram deportados de Portugal. Isto para dizer que esta população sofreu de tal forma, que se foi fechando no seu mundo. E para se defender, como são minoritários, a melhor forma de defesa é o ataque. Mas quando começamos a lidar com eles, vemos que são pessoas como quaisquer outras, têm as suas características, como todos temos as nossas características.
Já sou director há uns anos. Mesmo a nível da Igreja, ninguém os quer. A Igreja tem uma obra, um serviço que não funciona como devia, porque também a nível da igreja encontramos uma rejeição muito grande face a esta população. Mesmo na Europa, a Igreja perdeu o ‘comboio’. A maioria dos ciganos hoje pertence a seitas cristãs, por a Igreja também os marginalizou.
Na minha perspectiva, é uma paixão, um grande desafio e uma grande missão, ajudar esta gente a integrar-se, mas também ajudar a sociedade maioritária, a respeitar as diferenças. Eles são como são, têm que respeitar as regras da sociedade maioritária, mas essa sociedade também tem que aceitar que eles são diferentes, têm uma cultura e uma visão diferentes de ver o mundo, a família. Num tempo em que a família está em crise, o modelo familiar cigano devia ser um exemplo. Já alguém viu um velhote cigano a morrer num lar para idosos? Os ciganos amam a vida, amam os seus, que morrem no meio da família, rodeados pelos seus.
Este (a Pastoral dos Ciganos) é um trabalho que temos tentado desenvolver e que ultrapassa as fronteiras do nosso país. Estamos a desenvolver partilhas de experiências para tentar colher boas práticas a nível da Europa e de outros países do mundo, já que mantemos relações com outras realidades, como no Brasil e na Índia, país onde há padres e bispos ciganos.
Em Portugal, penso que só temos dois padres ciganos. Um assume-se como cigano o outro não porque não é português e tem uma história de vida de muito sofrimento e de exclusão na sua infância, algo que o marcou e fez ter receio de não se sentir acolhido e integrado se revelar que é cigano.
Em Espanha, por exemplo, há vários padres e muitas freiras ciganas. A Pastoral dos Ciganos em Espanha era dirigida por um padre cigano e agora é-o por uma freira cigana. O presidente na Europa, do Comité Católico Internacional para os Ciganos, é um padre francês cigano.
Acha que o secretário de Estado das Autarquias Locais do atual Governo, Carlos Miguel, que é cigano, pode ajudar a criar uma nova imagem sobre a comunidade, junto da sociedade em geral?
Ele tem feito a parte dele. Foi, durante vários anos, presidente da Câmara de Torres Vedras. Tem pai cigano e mãe não cigana, mas sempre se assumiu, e com orgulho, da sua ascendência cigana. Conheço-o pessoalmente porque faço parte do Conselho para a Integração dos Ciganos, do Alto Comissariado para as Migrações, e ele também o integra. É uma pessoa excepcional, simples, inteligente e capaz. E que se assume. E isso é importante para os ciganos: assumirem-se, não terem medo nem vergonha de dizerem que são ciganos.
Mas infelizmente a situação é que muitos fazem até cursos de formação, estão preparados, mas ninguém lhes dá trabalho pelo facto de serem ciganos. Conheço histórias terríveis. Uma delas, é de uma jovem que trabalhavam numa dessas empresas de ‘fast food’, nunca disse que era cigana, era uma funcionária excelente. Um dia chegou lá uma cigana, a gerente viu-a a falar com essa senhora e perguntou-lhe se a conhecia. A jovem disse-lhe que era tia dela, e no dia seguinte foi despedida.
Se calhar há muitos ciganos no mercado de trabalho que não se assumem por causa dessa discriminação, em pleno século XXI. É um trabalho de todos, que tem que ser feito de parte a parte.
Está agora na Igreja de Santo António, em Lisboa, que, como nos referiu, é um espaço de peregrinação muito importante, algo que a maior parte das pessoas não saberá. Qual é o trabalho que desenvolve?
Eu realizava o meu trabalho, como diretor, na Obra Católica das Migrações, mas nunca deixei de trabalhar na Igreja, porque o meu primeiro trabalho é a minha vocação sacerdotal e ser sacerdote. E durante dois anos enquanto fazia o trabalho de diretor, estava também já na Igreja de Santo António.
Agora estou mais empenhado, porque estou lá. Para mim, também foi uma surpresa (a forte peregrinação), porque sempre tive a ideia de que a maior parte das pessoas que visitava a Igreja de Santo António, fazia-o como turista, por Santo António ser o santo mais conhecido em todo o mundo.
Mas depois, apercebi-me que não é assim: a maioria das pessoas que vão à igreja, particularmente organizadas em grupo, vão como peregrinos. E conseguimos perceber que quase todas as peregrinações estrangeiras que vêm a Fátima, vão à Igreja de Santo António. E conseguimos até perceber o movimento de peregrinos estrangeiros no Santuário de Fátima, através de peregrinos que vão à nossa igreja.
Muitos grupos de peregrinos, ou na ida para Fátima, ou no regresso, passam por Santo António e pedem quase sempre para celebrar missa. Nós temos um movimento de missas em diversas línguas, que é algo extraordinário. E também é interessante que geram também uma mais-valia económica para a cidade, já que muitos desses grupos, dormem pelo menos uma noite em Lisboa.
Temos é agora um problema um pouco complicado. Fizemos um projecto, para o Orçamento Participativo, para arranjarmos a estátua. Como na igreja não se pode acender velas, as pessoas fazem-no na estátua. O projeto foi aprovado e a estátua será restaurada. Mas de algum tempo para cá, a junta de freguesia começou a alugar o largo para filmagens, e é uma vergonha. Eu até já ameacei chamar os meios de comunicação social, porque escrevemos para a junta de freguesia, falei com o presidente da Câmara de Lisboa e depois escrevi uma carta com fotografias a mostrar o largo cheio de camiões, máquinas e guindastes. Já houve dias em que quisemos abrir a igreja e não pudemos e a pessoa refilam a dizer que alugaram o largo de Santo António. Como é possível, no largo onde está a igreja e onde está o museu de Santo António, que são propriedade da Câmara, encher aquele espaço. Montam bares ambulantes mesmo junto à porta da igreja, toda a estátua de Santo António fica envolvida, os grupos de peregrinos e turistas que gostam de ir ver a estátua, levar as suas velas, não se podem aproximar. Estamos a fazer um protesto e penso que aquilo tem que ser resolvido.
Nasceu em que ilha dos Açores? Com que idade sentiu o ‘chamamento’?
Nasci na Terceira, sou da terra do Espírito Santo (risos). Sou de uma família grande, éramos 12 filhos, estamos nove vivos. O meu pai era ‘chef’ da cozinha do clube dos oficiais americanos na Base das Lajes. Sempre quis estudar, mas a família não podia e puseram-me a trabalhar. Com 11 anos fui trabalhar para uma carpintaria. Foi carpinteiro, marceneiro, entalhador, durante 10 anos. Fui depois à tropa, namorava, estive para casar tendo até comprado uma casa que pagava às prestações.
Mas havia uma insatisfação interior. Eu estou com 52 anos, quando fui à tropa tinha 21 anos e nessa altura começaram a aparecer as primeiras drogas nos Açores. Estive no quartel em Angra, para onde iam muitos jovens das outras ilhas e até do continente, e comecei a ver jovens ‘metidos’ na droga e situações degradantes. Isso fez-me começar a questionar o sentido da vida e, apesar deter a namorada, a casa, o trabalho, tinha mesmo uma insatisfação interior.
Um dia, aconteceu uma coisa muito simples. Tinha acabado de sair da tropa, era domingo, estava em casa e não me apetecia ir ter com a namorada, desci até à cozinha onde estava a trabalhar a minha mãe, que todos os anos comprava um calendário das Missões Franciscanas. O calendário era sempre pendurado no mesmo lugar. Eu vinha a descer a escada, fixei os olhos no calendário e parei. Disse para mim: ‘é isto que eu quero’, e já nem acabei de descer a escada. Voltei para trás e fui escrever uma carta que seguiu para a Procuradoria das Missões, a perguntar o que teria que fazer para entrar para a Ordem. Mas não disse nada a ninguém.
Recebi a resposta a comunicar que o provincial da altura iria a São Miguel a perguntar se poderia lá ir para falar com ele. Naquela altura, o provincial era o actual Bispo emérito de Bragança, D. António Montes Moreira. Dei uma qualquer desculpa lá em casa e fui a São Miguel falar com ele. Mas tinha 23 anos e o que lhes disse foi que queria fazer uma experiência para confirmar se era mesmo o que queria.
Vim então para Torres Vedras, mas foi complicado explicar à família, à namorada. Dei a casa a uma irmão e aí começou a minha aventura que dura até hoje.
Mas só tinha estudado até ao 6º ano e, aos 23 anos, fui para Braga, onde havia a possibilidade de fazer o 7º, 8º e 9º ano, num único ano lectivo. Concluí e ganhei um prémio de 50 contos por ter sido o melhor aluno do externato. Vim depois para Lisboa fazer o 10º e o 11º anos e entrei para a Universidade Católica, onde havia o 12º que servia de ano propedêutico, para cursar Teologia. Já tinha mais de 30 anos quando concluí o curso e disse que bastava de estudar. Mas o Provincial disse-me que devia ir para Roma estudar ‘Pastoral Juvenil e Catequética’, porque sempre tive muito jeito para trabalhar com jovens. Estive três anos em Roma e regressei.
Foi sempre religioso? A fé esteve sempre presente, mesmo antes do ‘chamamento’?
Os meus pais ensinaram-nos a rezar em casa e mandavam-nos sempre à missa. Mas como os meus pais não iam, mandavam-nos para a missa mas nós íamos era brincar. Quando acabava a hora da missa, voltávamos para casa. Mas mais tarde, como a minha namorada era americana e a maioria dos clientes da carpintaria eram americanos, eu tinha passe para entrar na Base (das Lajes). E, como falava e percebia inglês, ia sempre à missa na Base, aos domingos. E era ali que angariava os clientes para a carpintaria (risos), mas também me envolvia um bocado. Na minha terra muita gente pensava que eu não ia à igreja e nem sabiam que frequentava a missa na Base, todas as semanas.
Como diz que sempre se sentiu vocacionado para trabalhar com os jovens, peço-lhe que explique aos jovens que vão ler esta entrevista, o que é ser franciscano?
É a pessoa ter a consciência de que quer atingir a sua plenitude de ser humano. E depois, para quem tem fé, a plenitude de filho de Deus. Porque no mundo em que vivemos, onde o materialismo e o consumismo estão tão impregnados, onde as pessoas fazem do objectivo da sua vida, apenas o ter, o gastar, o gozar, e vão-se esvaziando por dentro, ser franciscano é um despojamento, é centrar-se na realização do ser, naquilo que tem de mais profundo, mais íntimo, como Deus quis.
É ‘despir-se’ de si mesmo, é dar valor ao que tem valor. É centrar a vida nos valores fundamentais, que são os próprios valores da vida. É claro que temos as nossas dificuldades, os nossos problemas, as nossas fragilidades, mas costumo dizer, em tom de brincadeira que eu – que namorei, que tenho a experiência do trabalho manual, que sei fazer canalizações e electricidade, que tive que aprender a cozinhar – sou feliz. Pode haver gente neste mundo tão feliz quanto eu, mas não haverá pessoa mais feliz. Porque o vazio que tinha antes, foi preenchido. Nunca mais o senti, nem àquela angústia que sentia. Sinto-me realizado.
Deus pede aos franciscanos o voto de castidade?
A vida consagrada exige o voto de castidade. O sacerdócio ministerial diocesano é que pode não exigir. Na vida consagrada religiosa, fazem parte os três votos: pobreza, obediência e castidade. Sou dos que defendem que a Igreja não é de ordenar padres para poderem casar. Defendo que quem foi para o seminário e foi ordenado padre, sabia o que estava a escolher. Se não é capaz, desista.
Mas também defendo que a Igreja deve ordenar homens casados, ou seja, homens que estão casados, que têm a sua família. Porque a questão da castidade nos sacerdotes, é a questão da disciplina, não é um dogma de fé, é uma questão disciplinar. Por isso, um homem casado, que tem uma família, penso que poderia ser. Mas os consagrados, não. A vida consagrada identifica-se precisamente por isso, e um voto de castidade de um religioso consagrado, procura ser um sinal para o mundo, de consagrar a sua capacidade de amar a Deus.
Quem casa, tem que pôr acima de Deus, a mulher ou o marido e depois os filhos. Depois é que vem Deus.
Acha então para um católico crente e praticante, a família está antes de Deus?
Acho que deve ser sempre a família à frente. Ao ter optado pelo matrimónio, é na mulher ou no marido e nos filhos que ama a Deus. Amar a Deus não é uma coisa abstracta, por isso é que Jesus Cristo nos deixou o mandamento “Amai-vos uns aos outros como eu vos amei”, e que São João diz numa das suas epístolas: “Quem diz que ama a Deus e não ama o seu irmão, é mentiroso, porque ninguém pode amar algo que nunca viu e não amar aquilo que está à sua frente”.
Ou seja, quem se casa, primeiro ter que pôr como acção, a mulher ou o marido, e os filhos. Neles, está a amar a Deus. Quem não se casa, quem faz o voto de castidade, tem que amor primeiro os irmãos todos, porque mé ali que ama a Deus. Agora, se sou padre e temos uma mulher, tenho filhos, tenho que ir socorrer primeiro os meus do que o meu ‘irmão’ que está ao lado. É por isso, por uma questão de amor e de disponibilidade total. Aquele que se quiser entregar verdadeiramente, de alma e coração, ao ministério sacerdotal, será sempre melhor sacerdote se estiver livre para isso.
O próximo ano, 2016, será o Ano Santo da Misericórdia, decidido pelo Papa Francisco e que se prolonga de 8 de dezembro 201 a 20 de novembro de 2016. Mas ó que é ser misericordioso?
Temos que ir primeiro ao sentido da palavra, que ver do coração – ‘cordis. Costumo dizer que ‘misericórdia’, ‘amor’ e ‘caridade’ são três palavras sinónimas, mas em dimensões diferentes.
O ‘amor’ pode ser algo um pouco abstracto, a ‘caridade’ é o amor em ação, e ‘misericórdia’ é um amor em ação mas que parte do coração. Se o outro está a sofrer, eu sofro com ele; se está a chorar, eu estou a chorar com ele. É sempre a partir do coração. Numa relação de amor misericordioso, nunca há julgamento.
(É uma relação) Onde há sempre perdão, onde o outro é aceite naquilo que é, independentemente daquilo que possa ter feito, das suas imperfeições, dos seus pecados, utilizando uma linguagem religiosa. Ser misericordioso é este amor em ação, mas a partir do coração. Ou seja, é assumir dentro de si mesmo tudo o que o outro é – nas suas alegrias, nas suas esperanças, nos seus sofrimentos, etc.
Ana Grácio Pinto e José Manuel Duarte
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